Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de "Criar Filhos no Século XXI" e “Manifesto antimaternalista”. É doutora em psicologia pela USP

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente Todas Chuvas no Sul

Tragédia no RS mostra que acreditar que somos exceção tem um preço

Contra todas as evidências, sempre achamos que seremos salvos do horror

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O que nos permite dormir à noite é a convicção de que no dia seguinte as coisas que abandonamos ao fechar os olhos ainda estarão lá. Não há a menor garantia de que isso ocorra uma vez que temos o botão vermelho das guerras nucleares sempre ao alcance de algum cretino que se acha Deus.

Ainda assim, para que a vida faça algum sentido e para que possamos aproveitar os inúmeros momentos de satisfação que ela nos proporciona, precisamos seguir com nossa crença de que um dia nasce depois do outro, repetindo a obviedade do cotidiano. Se algo vai quebrar essa regularidade, que seja a notícia de uma gravidez esperada, a resposta a um projeto sonhado, a chegada de uma pessoa querida. Mas nem sempre é assim.

Mesmo as tragédias anunciadas diariamente pelos cientistas, quando ocorrem, nos parecem saídas do nada, caprichos do destino. Elas abalam o mecanismo que nos faz crer, contra todas as evidências, que nós seremos salvos do horror.

Rua no bairro Harmonia, em Canoas (RS) - Nelson Almeida/AFP

Diante da tragédia, usamos todos os nossos recursos para nos defendermos psiquicamente da quebra da nossa fé inconsciente de que poderíamos, de um modo mágico, ser poupados por sermos os filhos preferidos da providência. Sem essa crença, caímos na vala comum da humanidade, que sempre parece, aos olhos do nosso narcisismo, ligeiramente apartada de nós.

Esse mecanismo serve para que sigamos nosso dia a dia, e não há nada de errado nisso, mas, como toda defesa, ela cobra sua conta quando o desamparo da nossa frágil existência é escancarado pelo real.

Para lidar com o efeito traumático das estarrecedoras cenas que nos chegam do RS, usamos alguns desses subterfúgios. Sentimos um alívio inconfesso e a culpa decorrente de ver que a tragédia não nos alcançou, daí o risco de uma pieguice constrangedora que as próprias vítimas em sua dignidade de sobreviventes raramente se permitem. As redes despejam cenas patéticas desse tipo.

Sentimos a impotência diante de algo que é maior do que nós e desembestamos a reproduzir maniacamente qualquer notícia que nos chega pela mídia sem a devida checagem. Nesse caso, quanto mais escabroso, maior pode ser a sensação de que se está fazendo algo. É nesse lugar que os produtores de fake news fazem sua festa, essa, sim, satânica, manipulando a comoção social para perpetuar a polarização política que criaram. Também usamos o abalo da tragédia para quebrar a monotonia de uma vida sem muitos atrativos, como tem sido a existência do homem pós-moderno.

Nenhuma dessas formas de lidar com o trauma é indicativo da má-fé, são apenas os mecanismos defensivos comuns dos bem-intencionados, que não visam os ganhos pessoais espúrios dos criminosos que conhecemos bem.

Trata-se apenas das formas mais ou menos conscientes com as quais lidamos com o infantil em nós, aquilo que Freud revela subsistir para além da infância e que, com sorte, aprendemos o que fazer com ele. A infância passa, o infantil é perene, mas a nossa responsabilidade sobre nossos atos só aumenta.

Não há forma de salvar vidas de vítimas dos desastres ambientais que não passe pelo reconhecimento de que nós já estamos entre elas, estejamos desalojados ou não, e de que só a ação humana pode evitar ou reduzir o que já está em curso.

Sigamos doando para órgãos reconhecidamente idôneos, apoiando a participação integral do governo e de voluntários nesse salvamento, mas sem esquecer de desmantelar o negacionismo em nós que propicia a repetição.

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