Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Todas Prêmio Nobel

'Minha mãe nunca mais estará em lugar nenhum do mundo'

'Uma Mulher', de Annie Ernaux, parece lutar contra o artigo indefinido do título

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Depois de ler quase todos os livros de Annie Ernaux, ainda me pego abismada pelo talento da autora em me estilhaçar por dentro ao descrever, na secura exata dos fatos, uma cena sem qualquer drama: "Três caixões estavam abertos para que pudéssemos escolher a cor do acolchoado. Escolhi o de carvalho porque era sua árvore preferida e ela sempre se preocupava em saber, ao comprar um móvel novo, se era de carvalho".

No celebrado "O Lugar", Ernaux inaugurou uma forma de fazer literatura (que seria tão criticada quanto copiada –e ainda conquistaria tantas línguas e um Nobel): narrar a vida e a morte do pai livre do academicismo que a separava tanto dele quanto da realidade na qual ela nasceu e viveu até seguir em frente com sua formação intelectual.

A escritora francesa Annie Ernaux - Alain Jocard/AFP

Agora, ao recompor as memórias da mãe, a autora retoma sua escrita neutra, honesta, autossociobiográfica e, em suas palavras, "abaixo da literatura". Annie volta a concluir que escrever não alcança toda a verdade ("só encontro a mulher do meu imaginário"), mas pelo menos a organiza e lhe dá uma impressão de continuidade frente a um rompimento impossível: "Agora tenho a sensação de que escrevo para poder eu mesma trazê-la ao mundo".

Escrito logo depois da morte da mãe, cada parágrafo de "Uma Mulher" parece lutar contra o artigo indefinido do título (e contra o fato de não sabermos o nome dela). Em outras palavras, ali se vê claramente a escrita autobiográfica de Annie Ernaux se sobrepujar (uma urgência talvez advinda da dor) à sua literatura tão reconhecida por revelar, sem a nitidez de uma individualização, personagens e funcionamentos sociais.

É, sim, a trajetória de uma dona de casa que, como tantas outras, não pôde estudar ou vivenciar na juventude qualquer experiência para longe da família (em normando, dialeto da mãe de Ernaux, "ambição significa a dor de ser apartado"). Uma mulher que, apesar de "um apetite nunca saciado", se casou, viveu lutos, trabalhou arduamente (primeiro como operária e depois comerciante) para "ser alguém" e criou a filha única para que esta pudesse ter tudo o que lhe fora negado: "Tinha certeza de seu amor e desta injustiça: ela passava o dia inteiro vendendo batata e leite para que eu estivesse sentada num anfiteatro ouvindo falarem de Platão".

Mas, segundo a autora, é sobretudo a história da "única mulher que realmente importou para mim", que "lavava as mãos antes de tocar nos livros". Uma mãe que podia ser agressiva, intensa, amargurada e, ao mesmo tempo, "forte e luminosa", muito afetiva, orgulhosa dos êxitos da filha (embora temesse ser desprezada pela cultura adquirida por Annie), dada a alguns prazeres e com a habilidade de ser "civilizada ao lado dos selvagens".

Como sempre acontece, os livros de Annie Ernaux ficam meses reverberando em meus pensamentos.

Num misto de perturbação e identificação, releio alguns parágrafos dez vezes. Sua literatura me transporta a saudades descomedidas e ao pavor de todos os lutos que ainda não vivi. Seus relatos mais simples são justamente os que traduzem tão bem o embate mais tácito entre classes sociais: "Com medo de não agradar por ser quem ela era, esperava ser querida por aquilo que dava e estava sempre preocupada em saber o que gostaríamos de ter", enquanto os outros, bem-nascidos, "não se viam obrigados a nada".

Logo após a morte do companheiro, a mãe de Annie Ernaux seguiu trabalhando em sua loja. "O desespero é um luxo", a autora leu em um jornal. "Este livro que eu tenho tempo e meios para escrever desde que perdi minha mãe também é, sem dúvida, um luxo."

Uma Mulher

  • Preço R$ 64,90
  • Autoria Annie Ernaux
  • Editora Fósforo
  • Tradução Marília Garcia

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